Mensagens e áudios obtidos pela Polícia Federal mostram um racha raro à luz do dia na família Bolsonaro. Em diálogos de junho e julho de 2025, Eduardo Bolsonaro chama o pai de “ingrato”, acusa Tarcísio de Freitas de se posicionar como herdeiro político e sugere que o governador de São Paulo teria prometido anistia ampla caso chegasse ao Planalto. O material aparece no relatório divulgado na quarta-feira (20/8/2025), que indiciou Jair Bolsonaro e o deputado por coação no curso do processo e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.
O que dizem as mensagens
Os diálogos cobrem o período de 13 de junho a 17 de julho de 2025, no auge da crise com os Estados Unidos após a decisão do então presidente Donald Trump de impor uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Nesse contexto, a troca de mensagens expõe irritação e disputa por espaço na direita.
O ponto de maior tensão veio em 17 de julho. No dia em que Jair Bolsonaro, em entrevista, classificou o filho como “imaturo”, Eduardo reagiu com palavrões e escreveu: “Graças aos elogios que você me deu no Poder360, tô pensando em dar nele [Tarcísio] outra pancada pra ver se você aprende, vtnc… você ingrato”. A mensagem, segundo a PF, sintetiza o incômodo do deputado com a aproximação entre o pai e o governador paulista.
A escalada começou antes. Em 24 de junho, em tom irônico, Eduardo sugere que Jair ficasse fora da corrida presidencial e atribui a Tarcísio a capacidade de “dialogar muito bem”, de “conceder anistia geral” e de ter um Supremo “que sempre foi nosso aliado” sem criar obstáculos. A leitura dos investigadores é que o deputado via o governador como alguém que trabalhava a narrativa de sucessão dentro do bolsonarismo.
Em 11 de julho, Eduardo volta ao ataque: “Só pra te manter informado: o Tarcísio nunca te ajudou em nada no STF. Ficou de braços cruzados te vendo apanhar e se aquecendo para 2026”. Para a PF, a frase reforça a disputa por capital político às vésperas de um novo ciclo eleitoral e a tentativa do filho de isolar o rival interno.
Os investigadores anexaram ainda registros de áudio e a linha do tempo das conversas para sustentar o diagnóstico de desgaste familiar e rearranjo de forças no campo conservador. A conflagração, segundo o relatório, acontece enquanto Eduardo tentava operar pontes com a ala trumpista nos EUA, em meio à turbulência econômica criada pela tarifa de 50%.
- 17/7/2025: Eduardo chama Jair de “ingrato” e promete “outra pancada” política em Tarcísio.
- 11/7/2025: acusa o governador de não ajudar Jair no STF e de mirar 2026.
- 24/6/2025: ironiza a saída de Jair da disputa e fala em “anistia geral” com Tarcísio.
- 13/6/2025: início do período de mensagens monitoradas pela PF.
O que a investigação aponta e o que vem agora
O indiciamento de Jair e Eduardo veio após a PF concluir que o deputado atuou, a partir dos Estados Unidos, para provocar pressões externas contra o governo brasileiro e ministros do Supremo Tribunal Federal. O relatório descreve tentativas de monopolizar o acesso do bolsonarismo a integrantes do governo Trump com um objetivo central: destravar uma anistia que beneficiasse o ex-presidente nos processos sobre tentativa de subversão da ordem democrática.
Em março de 2025, Eduardo pediu licença do mandato e mudou-se para os EUA, alegando perseguição política. De lá, ainda conforme a investigação, articulou medidas retaliatórias — como o endosso à tarifa de 50% — para aumentar o custo político interno no Brasil e, com isso, pressionar o STF e o governo. A PF enquadrou essa conduta em dois tipos penais.
Coação no curso do processo: ocorre quando alguém usa violência ou grave ameaça para favorecer interesse próprio ou de terceiros em processo judicial. No Código Penal, o crime está no art. 344. A PF diz ver nessa frente a tentativa de constranger autoridades brasileiras por meio de pressão internacional.
Tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito: previsto no art. 359-L do Código Penal, pune quem tenta abolir, por violência ou grave ameaça, a ordem constitucional ou o próprio Estado Democrático. Para os investigadores, a ofensiva para corroer a independência de instituições — combinada com articulações políticas para anistia — se encaixa nesse tipo penal, ainda que na forma tentada.
O relatório foi enviado à Procuradoria-Geral da República. Cabe ao Ministério Público decidir se apresenta denúncia ao Supremo Tribunal Federal. Se houver denúncia e o STF aceitar, abre-se ação penal. Como deputado federal, Eduardo tem foro no STF; Jair, mesmo fora do cargo, já responde a inquéritos na Corte e pode ser julgado ali conforme a conexão dos fatos.
Do ponto de vista político, as mensagens criam ruído em dois flancos. No núcleo familiar, mostram desconfiança mútua e divergência de estratégia. No campo da direita, expõem a competição com Tarcísio, ex-ministro de Infraestrutura de Jair e hoje nome mais viável do grupo para 2026, segundo aliados. A crítica de Eduardo — de que o governador não teria “se mexido” pelo ex-presidente no STF — joga luz sobre uma disputa silenciosa por padrinhos, apoios e controle da narrativa.
O pano de fundo internacional ajuda a entender o timing. A tarifa de 50% anunciada por Trump detonou uma crise diplomática e econômica, especialmente sensível a setores exportadores brasileiros. A PF sustenta que esse ambiente foi usado como alavanca de pressão: quanto maior o desgaste interno, maior a chance de arrancar concessões políticas, como a anistia aventada nas mensagens. Para a corporação, o desenho ultrapassa o jogo retórico e alcança o campo penal.
As defesas ainda podem contestar a autenticidade de trechos, a cadeia de custódia do material e o nexo entre os atos e os crimes apontados. Também podem alegar que as mensagens têm tom de desabafo e ironia, sem intenção criminosa. Esses pontos, se levantados, serão avaliados quando a PGR se manifestar e, eventualmente, pelo STF.
Enquanto isso, o efeito prático já está dado: a investigação expõe ao público uma disputa de bastidores que até então surgia apenas em sinais. E, de quebra, mostra como a política externa e a pressão econômica viraram ferramentas de um conflito doméstico que pode moldar a corrida de 2026.